Palavras são conceitos que buscam descrever uma parcela da realidade.
Uma das palavras mais usadas ultimamente no Brasil é “corrupção”. Mas o que ela
significa exatamente?
Em sentido amplo podemos dizer que corrupção significa “deterioração” ou
“adulteração das características originais de algo”, definição que abrange
inúmeros fenômenos, indo da putrefação de alimentos a condutas humanas como
desviar dinheiro, furar a fila e roubar bala da lojinha da esquina.
Mas sabemos que não é nesse sentido amplo que ela vem sendo usada pela
mídia e pela maioria dos brasileiros. Com efeito, o sentido mais usual de
corrupção é a corrupção pública.
As denúncias de corrupção pública tornaram-se
corriqueiras no Brasil contemporâneo. Hoje a política e a economia estão sendo
guiadas por investigações policiais. Praticamente todos os dias recebemos
informações sobre as investigações da Polícia Federal e seus sugestivos nomes
que mais parecem títulos de filmes de ficção, como operação “Lava-Jato”,
“Zelotes”, “Passe-livre”, “Vidas secas”. Experimentamos a sensação de que o
país está enredado numa teia de corrupção que engloba todos os cidadãos,
especialmente as mulheres e homens públicos que deveriam zelar pelo bem comum,
mas que usam seus cargos para roubar os cofres públicos, ou seja, desviar
dinheiro dos impostos que todos pagamos subvertendo o fundamento da República,
isto é, da “coisa pública” que a todos pertence.
Nesse contexto complexo, gostaria de refinar o conceito de “corrupção”
para reduzi-lo ao sentido que aparece na seguinte fala da Ministra Carmen
Lúcia: “Corrupção significa não que alguém foi furtado de alguma coisa, mas que
uma sociedade inteira foi furtada pela escola que não chega, pelo posto de saúde
que não se tem”.
Sem desconsiderar as análises que ressaltam o enraizamento da corrupção
– em sentido amplo – nas ações do cotidiano, como a propina para o guarda de
trânsito, o uso indevido do acostamento, a cola na prova da faculdade e outras
condutas antiéticas de cidadãos comuns, acredito que a corrupção
pública praticada por políticos e gestores públicos e que causa
danos palpáveis às instituições é a que recobre melhor o conceito de corrupção
e deve ser reservada para tais situações.
Como mostram as pesquisas, o sentido da palavra corrupção é
compartilhado pela população com o significado de corrupção pública, isto é,
aquela praticada por agentes do governo ou de alguma forma vinculada ao Estado.
Além disso, a maioria da população reconhece uma forte dimensão moral na
corrupção e condenam com veemência os crimes de “colarinho branco” como remessa
ilegal de divisas para o exterior, fraudes de licitação, superfaturamento e
desvio de dinheiro de obras públicas, como sendo crimes de corrupção. (Bignotto,
2011)
Ou seja, o que a sociedade parece compartilhar como sendo o sentido da
corrupção é aquela conduta que desvia dinheiro público, dinheiro dos impostos
que deveria ser revertido ao benefício social. E este sentido convencional e
popular é condizente com a definição jurídica de corrupção que exige, para
sua devida qualificação, de certos requisitos que apenas estão presentes em
situações que envolvem agentes públicos. Assim, o conceito jurídico é
compatível com o sentido popular do termo.
Para os casos de transgressão cotidiana parece não haver uma palavra
única na nossa língua que dê conta do fenômeno, como já destacou Danilo
Marcondes no post “Pequenas corrupções – diga não”.
A expressão “jeitinho” não é um termo análogo ao termo “corrupção”
porque o “jeitinho” também possui um sentido positivo, qual seja, de
criatividade diante da adversidade. Assim, o “jeitinho” brasileiro também pode
ser celebrado como uma característica positiva do povo brasileiro. Todos
sabemos as consequências problemáticas dessa licenciosidade no cumprimento da
lei, mas consideramos isso parte de nosso “modo de vida” descontraído e alegre.
Sempre conseguimos “dar um jeitinho” e melhorar uma situação adversa.
Portanto, na referência a condutas cotidianas de transgressão, sob pena
de chamar o vendedor ambulante de corrupto, ainda carecemos de uma palavra que
consiga generalizar condutas diversas sem apagar diferenças importantes. Como
descrever a conduta do cambista que superfatura o preço do ingresso, do
ambulante sem licença, da diarista que furta um sabonete ou um chocolate? Como
diferenciá-la do motorista imprudente que trafega pelo acostamento? E do
deputado que vende uma emenda de lei por 5 milhões de reais? E o Policial do
BOPE que vendia informações a traficantes? Será mesmo que “quem rouba uma bala
rouba um anel valioso”? E o que dizer do furto famélico onde o agente subtrai
comida de um supermercado para alimentar seu filho faminto?
Se entendermos que palavras são convenções linguísticas que buscam
descrever uma parcela do real – fatos e objetos – ou captar fenômenos, então
podemos dizer que certas palavras são conceitos cujo sentido apenas se
consolidada com o uso pela comunidade que compartilha aquela língua e aquela
forma de vida.
Nessa linha, o sentido convencional e compartilhado de corrupção é a
corrupção pública e parece nos faltar um termo melhor para descrever
as outras, pequenas, médias e grandes, transgressões do dia-a-dia. Não que elas
não sejam importantes ou não se comuniquem com as públicas, mas são ilícitos
menores que geralmente nem possuem as figuras do corrupto e do corruptor (com
exceção da propina ao guarda e ao fiscal da Receita que são agentes públicos)
e, às vezes, nem são considerados crimes, como furar a fila, ou então, são
sujeitas a multas como a bandalha no trânsito, ou ainda, a punições variadas
como a cola na prova.
O sentido de um conceito pode se transformar com o tempo porque a
própria realidade muda. Hoje vemos o conceito de família em disputa. Por um
lado, temos os mais tradicionais que defendem que a palavra deve ser usada
apenas para descrever um determinado tipo histórico de reunião familiar, a
saber, a família moderna formada por pai, mãe e filho (s). Mas tal sentido vem
sendo contestado pela realidade. As pessoas não estão mais se organizando
apenas dessa forma. Diversas outras formas de agrupamento vem se desenvolvendo
com foco no afeto entre as pessoas, sem distinção de sexo nem relação de
consanguinidade. E o direito contemporâneo respondeu a essa demanda concreta ao
considerar a união homoafetiva como um tipo de família. Recentemente, três
mulheres se casaram!
Uma vez reconhecido que o sentido é convencional e pode se alterar com o
tempo para melhor se adequar à realidade que pretende descrever, talvez seja
melhor adotarmos o senso comum e reservarmos a palavra corrupção para questões
que envolvam diretamente o setor público e empresas ou pessoas que lidem
diretamente com ele e, consequentemente, com o dinheiro público.
Além de mais precisa, essa visão também ressalta o fato de que a
corrupção pública contribui muito para que o cidadão comum despreze as
leis e sinta-se moralmente desculpado por sonegar os impostos e burlar o
sistema, sempre que tiver uma oportunidade para tal a baixo custo. Hoje, no
Brasil, o cidadão que sonega imposto consegue encontrar inúmeras razões para se
desculpar moralmente pela conduta antiética. Desde os serviços públicos de
péssima qualidade até os escândalos bilionários de desvio de dinheiro público,
o sonegador deixa de se sentir moralmente constrangido a seguir a regra, desde
que calcule que a chance de ser pego é baixa. O custo moral para o cidadão
comum tem se tornado irrisório diante de tantas falcatruas dos “homens
públicos”.
Mas, geralmente, na sonegação não se pode identificar as figuras do
corruptor ativo e do corruptor passivo e, nesse sentido, ela não se confunde
com a corrupção. A sonegação não é comparável, nem moralmente nem
juridicamente, ao desvio de dinheiro por parte daquele que prometeu usá-lo em
nome do bem comum. Isto porque o agente público pode ser corrompido porque tem
poder para trocar por dinheiro. O cidadão comum não tem poder algum, apenas age
racionalmente e calcula o preço de sua transgressão em um contexto determinado.
Uma depuração conceitual mais fina não pretende negar a relação mais
complexa entre público e privado, mas apenas levar em conta distinções
importantes, sob pena da palavra corrupção perder o sentido por ser usada
indistintamente para condutas diversas, misturando o péssimo costume de jogar
lixo na praia com a conduta de fraudar licitação e desviar verbas da Hemobrás.
É tudo corrupção!
Ao misturar fenômenos tão díspares sob o mesmo rótulo acabamos por criminalizar
o cidadão comum por suas pequenas falcatruas e não tocamos no cerne da
corrupção que assola as nossas instituições representativas: a confusão entre
interesse público e privado no interior do próprio Estado. Tal fato não
representa apenas uma “crise” da democracia como a mídia gosta de noticiar. As
relações promíscuas entre Estado e Mercado não se resolverão com mais do mesmo,
como nos lembra o filósofo francês Jacques Rancière em recente entrevista. É o
próprio modelo representativo que precisa ser revisto, a começar pelo sistema
eleitoral – que não representa efetivamente o povo brasileiro – passando pela
reforma do Judiciário. A coletividade dos cidadãos não pode ser culpabilizada
pelo seu egoísmo, ignorância ou despolitização enquanto as práticas da
administração pública continuam as mesmas práticas oligárquicas onde poder e
dinheiro são intercambiados à luz do dia em nome de uma suposta
“governabilidade”.
Como escreve Rancière: “Quando nós falamos de crise da democracia, nós
tentamos inverter as coisas, como se o problema viesse não das práticas de
poder, mas da coletividade dos cidadãos”.
Essa atitude de compartilhar a culpa entre todos os cidadãos acaba por
impedir o julgamento correto das devidas responsabilidades. Não é porque a
maioria de nós já colou na prova da faculdade que não temos estofo moral para
criticar políticos desonestos. Não é porque às vezes agimos de modo antiético
ao cortar pelo acostamento que não temos moral para exigir que agentes públicos
não desviem dinheiro, que façam licitações honestas e concorrências leais. Se
comparamos todos os tipos de erros morais, corremos o risco de nos tornarmos
todos hipócritas moralistas.
Podemos prestar atenção às relações cotidianas, sem contudo
desconsiderar que agentes públicos possuem um poder especial e estão em
situação privilegiada para desviar recursos, o que por si só, aumenta sua
responsabilidade e sua obrigação de prestar contas e de dar o exemplo aos
demais cidadãos.
Não é preciso ser doutor em educação para saber que as pessoas de todas
as idades aprendem pelo exemplo. Assim como as ações cotidianas alimentam a
corrupção pública, visto que é impossível estabelecer uma fronteira entre o
público e o privado, os cidadãos comuns também se alimentam no exemplo das
pessoas públicas. As subjetividades são forjadas nesse embate entre aqueles que
admiramos, respeitamos, tememos ou odiamos.
E os exemplos que temos recebido das pessoas públicas não são moralmente
sustentáveis. Esta semana deputados saíram no tapa diante de mais uma
procrastinação absurda do Conselho de Ética que não consegue nem começar a
julgar o presidente da Câmara – já sem legitimidade para presidir a casa. Este
mesmo senhor afirmou que a Presidente mentiu para a nação e foi rebatido pela
mesma acusação nos lembrando do famoso dilema do cretense onde um mentiroso
contumaz não tem mais nenhuma credibilidade para chamar qualquer outra pessoa
de mentirosa.
Em outro episódio surreal, um senador foi flagrado tramando a fuga de um
réu condenado e preso para evitar sua delação. Todas as grandes empreiteiras
fizeram delação premiada e confessaram o superfaturamento de obras. Dois
grandes banqueiros que já foram ganhadores de prêmios de personalidade do ano
estão presos. E mais recentemente, descobrimos que a obra de transposição do
Rio São Francisco também encontra-se sob fortes suspeitas de desvio de
dinheiro.
Quase todas as grandes figuras políticas e empresariais do país, ou seus
filhos e parentes, estão sendo acusadas de corrupção. Quase todas as obras
capitaneadas pelo governo foram superfaturadas. Nem mesmo o discurso do menos
pior tem funcionado porque a disputa pelo troféu do pior está acirrada.
Nesse contexto, fica difícil não perguntar: onde o cidadão comum pode
encontrar algum exemplo de conduta? Afinal, qual a legitimidade das leis que
devemos seguir se quem as faz mente e com frequência nos engana ? Como se
espelhar no grande líder das finanças se hoje ele está preso? Será correto
comparar a pequena transgressão cotidiana com esses casos escabrosos de desvio
de dinheiro público realizado por “grandes personalidades”? Será que a mesma
palavra “corrupção” pode dar conta de situações tão díspares?
Além da diferença de escala entre a corrupção e as transgressões
cotidianas, os políticos e gestores públicos são pessoas que escolheram como
profissão cuidar do uso do dinheiro público, gerir os interesses do bem comum,
mesmo que a partir de interesses privados. Assim, o lobby é teoricamente
considerado legítimo porque a disputa de interesses privados acabaria
beneficiando toda a sociedade.
Mas infelizmente não é isso o que temos visto na política brasileira. O
que ficou claro a partir das operações da Polícia Federal é que o Congresso
Nacional está dominado por interesses privados espúrios que envolvem
distribuição de cargos a aliados, favorecimento de bancos e montadoras de
veículos, manobras procedimentais para impedir votações, dentre outras condutas
corruptas que não atendem à coisa pública, a res publica. Mas sabemos também que o
próprio Judiciário não está imune a influências não republicanas e o Conselho
Nacional de Justiça tem se revelado um órgão indispensável para tentar melhorar
esse quadro.
Neste cenário, fica difícil estimar qual dos três poderes da República
ainda goza de alguma credibilidade perante à população. Poucas são as
instituições que ainda apresentam algum nível de confiança, sendo o Judiciário
considerado mais confiável que o Executivo e o Legislativo, mas perdendo para a
Igreja Universal Reino de Deus do controverso bispo Edir Macedo.
Nesse contexto de corrupção generalizada, uma outra distinção também se
faz importante para evitar falsos alardes: a distinção entre corrupção
e sensação de corrupção. Apesar de ser impossível determinar
qual o governo mais corrupto vale ressaltar que o fortalecimento da instituição
“Polícia Federal” é um dos motivos para o aumento da sensação de corrupção.
A corrupção, ela mesma, sempre existiu em níveis maiores ou menores e
não temos nenhum parâmetro para avaliar qual o vencedor dessa disputa inglória
entre partidos e grupos políticos. Mas a sensação de corrupção talvez nunca
tenha sido tão forte como agora porque nunca antes as instituições estiveram
tão maduras.
Vale destacar também que novas leis anticorrupção, sobretudo os
dispositivos que autorizam o uso de delação premiada, produziram uma
reviravolta nas investigações. Na última semana vimos uma grande empreiteira
fazer um acordo de devolução de 1 bilhão de reais e de delação de políticos envolvidos
no superfaturamento de estádios da Copa do Mundo de 2014. Também temos
assistido a prisão de diversos empresários que aceitaram delatar comparsas para
diminuir seu tempo de prisão. E a colaboração internacional dos bancos também
vem se somar nos esforços de identificação e recuperação de valores desviados,
como foi o caso da Suíça em recente investigação sobre Eduardo Cunha.
Além disso, o fortalecimento de órgãos como o Ministério Público Federal
e o Tribunal de Contas da União, instituições importantes para o combate da
corrupção pública, também é uma das razões para o aumento dos casos
descobertos.
Enfim, inúmeras novidades no campo institucional tem trazido uma enorme
quantidade de casos à tona e contribuído para o aumento da
sensação de corrupção, mas não necessariamente da quantidade de
casos de corrupção, isto é, da corrupção propriamente dita.
Isto significa dizer que a corrupção, seja ela pública ou privada,
pequena ou grande, sempre existiu no Estado patrimonialista brasileiro e as
transgressões cotidianas, do malandro ao traficante, fazem parte do “jeitinho”
de ser brasileiro desde o Império. E nada nos impede de retroceder até Eva,
corrompida pela serpente.
Se a corrupção é nossa velha conhecida, o novo é que agora ela está
sendo exposta, investigada e noticiada, levando a um maior debate onde talvez a
melhor razão vença. Mas essa exposição exacerbada dos casos de corrupção também
conduz a ideias errôneas, como a de que apenas os últimos governos foram
corruptos ou de que pequenas transgressões cotidianas se equiparam à corrupção
pública. Nesse contexto, onde paradoxalmente, devemos comemorar o aumento do
número de casos investigados pela Polícia Federal, nada melhor do que refinar
conceitos e explicitar o pensamento na busca da identificação e combate do
inimigo comum que subjaz a todas as corrupções e transgressões: as condutas
antiéticas que ameaçam o convívio social.
Referências:
Newton Bignotto, “Corrupção e Opinião Pública” apud
AVRITZER, FILGUEIRAS (org.). Corrupção e sistema político no Brasil.
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011.
HARDY-VALLÉE, Benoit. Que é um conceito?
São Paulo: Parábola, 2013.
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1604544-imprensa-e-redes-sociais-sao-as-instituicoes-de-maior-prestigio-diz-datafolha.shtml
http://era.org.br/2015/09/pequenas-corrupcoes-diga-nao/
https://bloglavrapalavra.wordpress.com/2015/12/09/ranciere-a-emancipacao-e-um-problema-de-todos/
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/12/justica-afasta-diretor-presidente-da-hemobras-e-outras-duas-pessoas.html
Rachel Nigro, Doutora em Filosofia e Mestre
em Direito pela Puc-Rio; professora dos departamentos de Direito e Filosofia,
do Centro de Empreendedorismo e do Centro de pós-graduação em Filosofia
Contemporânea.
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