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...Onde não existe justiça não pode haver direito...

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

CORRUPÇÃO: um conceito em disputa





Palavras são conceitos que buscam descrever uma parcela da realidade. Uma das palavras mais usadas ultimamente no Brasil é “corrupção”. Mas o que ela significa exatamente?

Em sentido amplo podemos dizer que corrupção significa “deterioração” ou “adulteração das características originais de algo”, definição que abrange inúmeros fenômenos, indo da putrefação de alimentos a condutas humanas como desviar dinheiro, furar a fila e roubar bala da lojinha da esquina.

Mas sabemos que não é nesse sentido amplo que ela vem sendo usada pela mídia e pela maioria dos brasileiros. Com efeito, o sentido mais usual de corrupção é a corrupção pública.

As denúncias de corrupção pública tornaram-se corriqueiras no Brasil contemporâneo. Hoje a política e a economia estão sendo guiadas por investigações policiais. Praticamente todos os dias recebemos informações sobre as investigações da Polícia Federal e seus sugestivos nomes que mais parecem títulos de filmes de ficção, como operação “Lava-Jato”, “Zelotes”, “Passe-livre”, “Vidas secas”. Experimentamos a sensação de que o país está enredado numa teia de corrupção que engloba todos os cidadãos, especialmente as mulheres e homens públicos que deveriam zelar pelo bem comum, mas que usam seus cargos para roubar os cofres públicos, ou seja, desviar dinheiro dos impostos que todos pagamos subvertendo o fundamento da República, isto é, da “coisa pública” que a todos pertence.

Nesse contexto complexo, gostaria de refinar o conceito de “corrupção” para reduzi-lo ao sentido que aparece na seguinte fala da Ministra Carmen Lúcia: “Corrupção significa não que alguém foi furtado de alguma coisa, mas que uma sociedade inteira foi furtada pela escola que não chega, pelo posto de saúde que não se tem”.
Sem desconsiderar as análises que ressaltam o enraizamento da corrupção – em sentido amplo – nas ações do cotidiano, como a propina para o guarda de trânsito, o uso indevido do acostamento, a cola na prova da faculdade e outras condutas antiéticas de cidadãos comuns, acredito que a corrupção pública praticada por políticos e gestores públicos e que causa danos palpáveis às instituições é a que recobre melhor o conceito de corrupção e deve ser reservada para tais situações.

Como mostram as pesquisas, o sentido da palavra corrupção é compartilhado pela população com o significado de corrupção pública, isto é, aquela praticada por agentes do governo ou de alguma forma vinculada ao Estado. Além disso, a maioria da população reconhece uma forte dimensão moral na corrupção e condenam com veemência os crimes de “colarinho branco” como remessa ilegal de divisas para o exterior, fraudes de licitação, superfaturamento e desvio de dinheiro de obras públicas, como sendo crimes de corrupção. (Bignotto, 2011)

Ou seja, o que a sociedade parece compartilhar como sendo o sentido da corrupção é aquela conduta que desvia dinheiro público, dinheiro dos impostos que deveria ser revertido ao benefício social. E este sentido convencional e popular é condizente com a definição jurídica de corrupção que exige, para sua devida qualificação, de certos requisitos que apenas estão presentes em situações que envolvem agentes públicos. Assim, o conceito jurídico é compatível com o sentido popular do termo.

Para os casos de transgressão cotidiana parece não haver uma palavra única na nossa língua que dê conta do fenômeno, como já destacou Danilo Marcondes no post “Pequenas corrupções – diga não”.

A expressão “jeitinho” não é um termo análogo ao termo “corrupção” porque o “jeitinho” também possui um sentido positivo, qual seja, de criatividade diante da adversidade. Assim, o “jeitinho” brasileiro também pode ser celebrado como uma característica positiva do povo brasileiro. Todos sabemos as consequências problemáticas dessa licenciosidade no cumprimento da lei, mas consideramos isso parte de nosso “modo de vida” descontraído e alegre. Sempre conseguimos “dar um jeitinho” e melhorar uma situação adversa.

Portanto, na referência a condutas cotidianas de transgressão, sob pena de chamar o vendedor ambulante de corrupto, ainda carecemos de uma palavra que consiga generalizar condutas diversas sem apagar diferenças importantes. Como descrever a conduta do cambista que superfatura o preço do ingresso, do ambulante sem licença, da diarista que furta um sabonete ou um chocolate? Como diferenciá-la do motorista imprudente que trafega pelo acostamento? E do deputado que vende uma emenda de lei por 5 milhões de reais? E o Policial do BOPE que vendia informações a traficantes? Será mesmo que “quem rouba uma bala rouba um anel valioso”? E o que dizer do furto famélico onde o agente subtrai comida de um supermercado para alimentar seu filho faminto?

Se entendermos que palavras são convenções linguísticas que buscam descrever uma parcela do real – fatos e objetos – ou captar fenômenos, então podemos dizer que certas palavras são conceitos cujo sentido apenas se consolidada com o uso pela comunidade que compartilha aquela língua e aquela forma de vida.

Nessa linha, o sentido convencional e compartilhado de corrupção é a corrupção pública e parece nos faltar um termo melhor para descrever as outras, pequenas, médias e grandes, transgressões do dia-a-dia. Não que elas não sejam importantes ou não se comuniquem com as públicas, mas são ilícitos menores que geralmente nem possuem as figuras do corrupto e do corruptor (com exceção da propina ao guarda e ao fiscal da Receita que são agentes públicos) e, às vezes, nem são considerados crimes, como furar a fila, ou então, são sujeitas a multas como a bandalha no trânsito, ou ainda, a punições variadas como a cola na prova.
O sentido de um conceito pode se transformar com o tempo porque a própria realidade muda. Hoje vemos o conceito de família em disputa. Por um lado, temos os mais tradicionais que defendem que a palavra deve ser usada apenas para descrever um determinado tipo histórico de reunião familiar, a saber, a família moderna formada por pai, mãe e filho (s). Mas tal sentido vem sendo contestado pela realidade. As pessoas não estão mais se organizando apenas dessa forma. Diversas outras formas de agrupamento vem se desenvolvendo com foco no afeto entre as pessoas, sem distinção de sexo nem relação de consanguinidade. E o direito contemporâneo respondeu a essa demanda concreta ao considerar a união homoafetiva como um tipo de família. Recentemente, três mulheres se casaram!

Uma vez reconhecido que o sentido é convencional e pode se alterar com o tempo para melhor se adequar à realidade que pretende descrever, talvez seja melhor adotarmos o senso comum e reservarmos a palavra corrupção para questões que envolvam diretamente o setor público e empresas ou pessoas que lidem diretamente com ele e, consequentemente, com o dinheiro público.

Além de mais precisa, essa visão também ressalta o fato de que a corrupção pública contribui muito para que o cidadão comum despreze as leis e sinta-se moralmente desculpado por sonegar os impostos e burlar o sistema, sempre que tiver uma oportunidade para tal a baixo custo. Hoje, no Brasil, o cidadão que sonega imposto consegue encontrar inúmeras razões para se desculpar moralmente pela conduta antiética. Desde os serviços públicos de péssima qualidade até os escândalos bilionários de desvio de dinheiro público, o sonegador deixa de se sentir moralmente constrangido a seguir a regra, desde que calcule que a chance de ser pego é baixa. O custo moral para o cidadão comum tem se tornado irrisório diante de tantas falcatruas dos “homens públicos”.

Mas, geralmente, na sonegação não se pode identificar as figuras do corruptor ativo e do corruptor passivo e, nesse sentido, ela não se confunde com a corrupção. A sonegação não é comparável, nem moralmente nem juridicamente, ao desvio de dinheiro por parte daquele que prometeu usá-lo em nome do bem comum. Isto porque o agente público pode ser corrompido porque tem poder para trocar por dinheiro. O cidadão comum não tem poder algum, apenas age racionalmente e calcula o preço de sua transgressão em um contexto determinado.

Uma depuração conceitual mais fina não pretende negar a relação mais complexa entre público e privado, mas apenas levar em conta distinções importantes, sob pena da palavra corrupção perder o sentido por ser usada indistintamente para condutas diversas, misturando o péssimo costume de jogar lixo na praia com a conduta de fraudar licitação e desviar verbas da Hemobrás. É tudo corrupção!

Ao misturar fenômenos tão díspares sob o mesmo rótulo acabamos por criminalizar o cidadão comum por suas pequenas falcatruas e não tocamos no cerne da corrupção que assola as nossas instituições representativas: a confusão entre interesse público e privado no interior do próprio Estado. Tal fato não representa apenas uma “crise” da democracia como a mídia gosta de noticiar. As relações promíscuas entre Estado e Mercado não se resolverão com mais do mesmo, como nos lembra o filósofo francês Jacques Rancière em recente entrevista. É o próprio modelo representativo que precisa ser revisto, a começar pelo sistema eleitoral – que não representa efetivamente o povo brasileiro – passando pela reforma do Judiciário. A coletividade dos cidadãos não pode ser culpabilizada pelo seu egoísmo, ignorância ou despolitização enquanto as práticas da administração pública continuam as mesmas práticas oligárquicas onde poder e dinheiro são intercambiados à luz do dia em nome de uma suposta “governabilidade”.

Como escreve Rancière: “Quando nós falamos de crise da democracia, nós tentamos inverter as coisas, como se o problema viesse não das práticas de poder, mas da coletividade dos cidadãos”.
Essa atitude de compartilhar a culpa entre todos os cidadãos acaba por impedir o julgamento correto das devidas responsabilidades. Não é porque a maioria de nós já colou na prova da faculdade que não temos estofo moral para criticar políticos desonestos. Não é porque às vezes agimos de modo antiético ao cortar pelo acostamento que não temos moral para exigir que agentes públicos não desviem dinheiro, que façam licitações honestas e concorrências leais. Se comparamos todos os tipos de erros morais, corremos o risco de nos tornarmos todos hipócritas moralistas.

Podemos prestar atenção às relações cotidianas, sem contudo desconsiderar que agentes públicos possuem um poder especial e estão em situação privilegiada para desviar recursos, o que por si só, aumenta sua responsabilidade e sua obrigação de prestar contas e de dar o exemplo aos demais cidadãos.

Não é preciso ser doutor em educação para saber que as pessoas de todas as idades aprendem pelo exemplo. Assim como as ações cotidianas alimentam a corrupção pública, visto que é impossível estabelecer uma fronteira entre o público e o privado, os cidadãos comuns também se alimentam no exemplo das pessoas públicas. As subjetividades são forjadas nesse embate entre aqueles que admiramos, respeitamos, tememos ou odiamos.

E os exemplos que temos recebido das pessoas públicas não são moralmente sustentáveis. Esta semana deputados saíram no tapa diante de mais uma procrastinação absurda do Conselho de Ética que não consegue nem começar a julgar o presidente da Câmara – já sem legitimidade para presidir a casa. Este mesmo senhor afirmou que a Presidente mentiu para a nação e foi rebatido pela mesma acusação nos lembrando do famoso dilema do cretense onde um mentiroso contumaz não tem mais nenhuma credibilidade para chamar qualquer outra pessoa de mentirosa.

Em outro episódio surreal, um senador foi flagrado tramando a fuga de um réu condenado e preso para evitar sua delação. Todas as grandes empreiteiras fizeram delação premiada e confessaram o superfaturamento de obras. Dois grandes banqueiros que já foram ganhadores de prêmios de personalidade do ano estão presos. E mais recentemente, descobrimos que a obra de transposição do Rio São Francisco também encontra-se sob fortes suspeitas de desvio de dinheiro.

Quase todas as grandes figuras políticas e empresariais do país, ou seus filhos e parentes, estão sendo acusadas de corrupção. Quase todas as obras capitaneadas pelo governo foram superfaturadas. Nem mesmo o discurso do menos pior tem funcionado porque a disputa pelo troféu do pior está acirrada.

Nesse contexto, fica difícil não perguntar: onde o cidadão comum pode encontrar algum exemplo de conduta? Afinal, qual a legitimidade das leis que devemos seguir se quem as faz mente e com frequência nos engana ? Como se espelhar no grande líder das finanças se hoje ele está preso? Será correto comparar a pequena transgressão cotidiana com esses casos escabrosos de desvio de dinheiro público realizado por “grandes personalidades”? Será que a mesma palavra “corrupção” pode dar conta de situações tão díspares?

Além da diferença de escala entre a corrupção e as transgressões cotidianas, os políticos e gestores públicos são pessoas que escolheram como profissão cuidar do uso do dinheiro público, gerir os interesses do bem comum, mesmo que a partir de interesses privados. Assim, o lobby é teoricamente considerado legítimo porque a disputa de interesses privados acabaria beneficiando toda a sociedade.

Mas infelizmente não é isso o que temos visto na política brasileira. O que ficou claro a partir das operações da Polícia Federal é que o Congresso Nacional está dominado por interesses privados espúrios que envolvem distribuição de cargos a aliados, favorecimento de bancos e montadoras de veículos, manobras procedimentais para impedir votações, dentre outras condutas corruptas que não atendem à coisa pública, a res publica. Mas sabemos também que o próprio Judiciário não está imune a influências não republicanas e o Conselho Nacional de Justiça tem se revelado um órgão indispensável para tentar melhorar esse quadro.

Neste cenário, fica difícil estimar qual dos três poderes da República ainda goza de alguma credibilidade perante à população. Poucas são as instituições que ainda apresentam algum nível de confiança, sendo o Judiciário considerado mais confiável que o Executivo e o Legislativo, mas perdendo para a Igreja Universal Reino de Deus do controverso bispo Edir Macedo.

Nesse contexto de corrupção generalizada, uma outra distinção também se faz importante para evitar falsos alardes: a distinção entre corrupção e sensação de corrupção. Apesar de ser impossível determinar qual o governo mais corrupto vale ressaltar que o fortalecimento da instituição “Polícia Federal” é um dos motivos para o aumento da sensação de corrupção.

A corrupção, ela mesma, sempre existiu em níveis maiores ou menores e não temos nenhum parâmetro para avaliar qual o vencedor dessa disputa inglória entre partidos e grupos políticos. Mas a sensação de corrupção talvez nunca tenha sido tão forte como agora porque nunca antes as instituições estiveram tão maduras.

Vale destacar também que novas leis anticorrupção, sobretudo os dispositivos que autorizam o uso de delação premiada, produziram uma reviravolta nas investigações. Na última semana vimos uma grande empreiteira fazer um acordo de devolução de 1 bilhão de reais e de delação de políticos envolvidos no superfaturamento de estádios da Copa do Mundo de 2014. Também temos assistido a prisão de diversos empresários que aceitaram delatar comparsas para diminuir seu tempo de prisão. E a colaboração internacional dos bancos também vem se somar nos esforços de identificação e recuperação de valores desviados, como foi o caso da Suíça em recente investigação sobre Eduardo Cunha.

Além disso, o fortalecimento de órgãos como o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União, instituições importantes para o combate da corrupção pública, também é uma das razões para o aumento dos casos descobertos.

Enfim, inúmeras novidades no campo institucional tem trazido uma enorme quantidade de casos à tona e contribuído para o aumento da sensação de corrupção, mas não necessariamente da quantidade de casos de corrupção, isto é, da corrupção propriamente dita.

Isto significa dizer que a corrupção, seja ela pública ou privada, pequena ou grande, sempre existiu no Estado patrimonialista brasileiro e as transgressões cotidianas, do malandro ao traficante, fazem parte do “jeitinho” de ser brasileiro desde o Império. E nada nos impede de retroceder até Eva, corrompida pela serpente.

Se a corrupção é nossa velha conhecida, o novo é que agora ela está sendo exposta, investigada e noticiada, levando a um maior debate onde talvez a melhor razão vença. Mas essa exposição exacerbada dos casos de corrupção também conduz a ideias errôneas, como a de que apenas os últimos governos foram corruptos ou de que pequenas transgressões cotidianas se equiparam à corrupção pública. Nesse contexto, onde paradoxalmente, devemos comemorar o aumento do número de casos investigados pela Polícia Federal, nada melhor do que refinar conceitos e explicitar o pensamento na busca da identificação e combate do inimigo comum que subjaz a todas as corrupções e transgressões: as condutas antiéticas que ameaçam o convívio social.

Referências:
Newton Bignotto, “Corrupção e Opinião Pública” apud AVRITZER, FILGUEIRAS (org.). Corrupção e sistema político no Brasil. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011.
HARDY-VALLÉE, Benoit. Que é um conceito? São Paulo: Parábola, 2013.
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1604544-imprensa-e-redes-sociais-sao-as-instituicoes-de-maior-prestigio-diz-datafolha.shtml
http://era.org.br/2015/09/pequenas-corrupcoes-diga-nao/
https://bloglavrapalavra.wordpress.com/2015/12/09/ranciere-a-emancipacao-e-um-problema-de-todos/
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/12/justica-afasta-diretor-presidente-da-hemobras-e-outras-duas-pessoas.html

Rachel Nigro, Doutora em Filosofia e Mestre em Direito pela Puc-Rio; professora dos departamentos de Direito e Filosofia, do Centro de Empreendedorismo e do Centro de pós-graduação em Filosofia Contemporânea.

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