"...Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus..."
...Onde não existe justiça não pode haver direito...

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

PODER REGULAMENTAR

PODER REGULAMENTAR
          Cristiane Ferreira da Maia Cruz
Eliane Fernandes de Abreu


Os poderes administrativos têm várias características peculiares e são divididos nas seguintes espécies: poder regulamentar, hierárquico, disciplinar e de polícia. Todos estão previstos no ordenamento jurídico e são instrumentos de sua atuação, sendo que o seu exercício é obrigatório, lícito e imposto pela legislação.

Dentre eles, o poder regulamentar é o que gera maiores discussões, porque o resultado do seu exercício é a criação de uma norma geral e abstrata, considerada lei no sentido material, que atinge um incontável número de particulares.

NORBERTO BOBBIO leciona que:

Os regulamentos são como as leis, normas gerais e abstratas, mas, à diferença das leis, a sua produção é confiada geralmente ao Poder Executivo por delegação do Poder Legislativo, e uma de suas funções é a de integrar leis muito genéricas, que contêm somente diretrizes de princípio e não poderiam ser aplicadas sem que fossem ulteriormente especificadas. É impossível que o Poder Legislativo formule todas as normas necessárias para regular a vida social; limita-se então a formular normas genéricas, as quais contêm somente diretrizes, e confia aos órgãos executivos, que são muito mais numerosos, o encargo de torná-las exequíveis.

CLÈVE (2000: pp. 288-290) cita aquilo que denomina os princípios reitores das relações entre a lei e o regulamento, que lembra serem devidos ao jurista português Gomes Canotilho, e que são:

O primeiro princípio é o da primazia ou preeminência da lei. A lei está, hierarquicamente, acima do regulamento. Este não pode contrariar aquela. O direito brasileiro não tolera regulamentos revocatórios (ab-rogatórios ou derrogatórios) e suspensivos da eficácia de normas legais. Todavia, " (...) a lei frente ao regulamento não tem limites de atuação funcionáveis: pode derrogá-lo ou excluir um regulamento para ordenar qualquer matéria (...); pode derrogá-lo pura e simplesmente ou, pelo contrário, elevá-lo de categoria, convertendo-o em lei e emprestando-lhe com isso sua própria força superior; pode restringir seu âmbito de atuação ou, pelo contrário, ampliá-lo. Não há nenhum âmbito que pertença exclusivamente ao regulamento e em que este possa atuar à margem ou prescindindo (...) da lei.

O segundo princípio é o da precedência da lei. O Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa (dever de não contrariar), mas também uma vinculação positiva (dever de apontar o fundamento legal) da Administração à lei.

Assim, não é legítima a edição de regulamento sem a prévia existência da lei. O regulamento presta-se para favorecer a aplicação da lei.

O terceiro princípio é o da acessoriedade dos regulamentos. Os regulamentos são acessórios em relação à lei. Não podem tomar o lugar delas. Não podem assumir o papel que a Constituição reservou à lei. São atos normativos sujeitos à lei e dela dependentes.

Como ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘os seus preceitos constituem regras técnicas de boa execução da lei, para melhor aplicação. Complementar os seus preceitos, neles apoiados, como meros elementos de sua execução, como procedimentos de sua aplicação. ’ São ainda acessórios, porque os seus preceitos formam um direito adjetivo e um direito processual do direito substantivo instituído pela lei.

O quarto princípio é o do congelamento da categoria. Dele decorre que disciplinada determinada por meio de lei, apenas por lei ou ato de hierarquia superior poderá sofrer alteração. Da hierarquia normativa, extrai-se a regra segundo a qual um ato normativo só pode ser revogado (derrogado ou ab-rogado), modificado ou substituído, por outro ato normativo de igual ou superior qualidade formal.

O quinto princípio é o da identidade própria do regulamento. Ou seja, ainda que previsto pela lei, as normas regulamentares guardam a hierarquia que lhes é própria, não alcançando, com a simples previsão legal, promoção hierárquica ou deslocamento de regime jurídico (do regulamentar para o específico da lei). Ainda que o Legislativo pretenda que a norma regulamentar integre o diploma legal, isto não pode ocorrer em face da Constituição. Semelhante previsão não passa de cláusula nula e insuscetível de realização.

O sexto princípio é o da autonomia da atribuição regulamentar. Bem por isso, regulamento independe de autorização legislativa, encontrando seu fundamento não na lei, mas na própria norma constitucional. Isto quer significar que (i) com ou sem previsão legal (do regulamento, evidentemente), poderá o Chefe do poder Executivo regulamentar as leis cuja aplicação desafiem atuação administrativa; (ii) não pode o Legislador proibir a atuação do poder regulamentar do Executivo; regra legal desse quilate será nula por inconstitucional; (iii) para a manifestação da ação regulamentar, basta a existência prévia de lei não auto-executável exigente de atuação administrativa.

O sétimo princípio é o da colaboração necessária entre a lei e o regulamento. Em face dele, havendo dispositivos não auto-aplicáveis, então deverá o Chefe do Executivo regulamentá-los, sob pena, inclusive, de praticar crime de responsabilidade (artigo 85, VII, da CF).

O oitavo e último princípio, nesta amostragem referido, é o da autonomia da lei. Dele decorre que (i) a vigência da lei não pode ficar condicionada à edição de regulamento; previsão legal neste sentido fere a Constituição, importando delegação vedada de poder; a eficácia (execução) da lei pode ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do Executivo (o princípio da divisão dos poderes não admite deixar-se ao inteiro arbítrio do Executivo a suspensão ou adiamento da execução da lei); (iii) não previsto prazo para a edição de regulamento, então a lei ‘será eficaz desde a sua vigência em tudo aquilo que não depender do ato complementar e inicial da execução’; e, finalmente, (iv) definido o prazo da regulamentação e esgotado sem sua edição, ‘a lei será eficaz em tudo o que não depender do regulamento, já que antes de vencida a dilação temporal, era totalmente ineficaz.

Deste longo porém proveitoso excerto doutrinário, fica clara a delimitação do poder regulamentar, o qual deverá ser editado nas lindes da lei, ou seja, em estrita obediência à lei; tal delimitação corresponde àquilo que se denomina de princípio da legalidade, conforme será demonstrado.

No Brasil, em função do chamado princípio da legalidade contido no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, segundo o qual somente a lei, no sentido material e no sentido formal, é capaz de obrigar alguém a fazer ou a deixar de fazer algo, ou, em outras palavras, somente a lei é capaz de inovar na ordem jurídica, o princípio da legalidade atua permitindo ao regulamento apenas, de maneira bastante rígida, propiciar a fiel execução das leis, nos estritos termos do artigo 84, inciso IV da Carta Constitucional.

Ainda assim, há na doutrina entendimentos no sentido de que o regulamento pode completar a lei lacunosa, no que diz respeito, exclusivamente, a possibilitar a sua efetiva aplicabilidade; afinal, a lei vigente não pode ser destituída da eficácia pela falta de regulamento que possibilite a sua execução.

Não é por outro motivo que MORAES (2002) afirma que:

"O exercício do poder regulamentar do Executivo situa-se na principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2º; 60, § 4º, III), pois, salvo em situação de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa.
Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da aplicabilidade da lei forem conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões legais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprir suas lacunas de ordem prática ou técnica." (grifamos)

Desta lição do doutrinador, faz-se possível retirar duas importantes pistas acerca dos limites do poder regulamentar, com as quais se poderá caracterizar a exorbitação do mesmo, que são a impossibilidade de criar normas gerais e a possibilidade de suprir lacunas de ordem técnica ou prática, vale dizer: que venham a impossibilitar a aplicação da lei.

Quanto à natureza jurídica dos regulamentos, Duguit, apud RÁO (1999: p. 311), não vê qualquer diferença entre a lei e o regulamento, do ponto de vista puramente material ou, como chama, do ponto de vista interno: "Il reste qu’au point de vue juridique interne le règlement et le loi materialle sont identiques".

Não obstante, o próprio RÁO (idem, ibidem) faz distinção material e formal entre ambos os institutos jurídicos. Do ponto de vista substancial, a distinção é que a lei, dentro do único limite que a Constituição lhe traça, pode escolher livremente a relação de fato que quer disciplinar e pode discipliná-la como melhor se afigurar ao legislador, ao passo que ao regulamento não se permite nem exceder nem restringir o alcance da lei que se regula; em outras palavras, aquela tem o que o autor chama de conteúdo próprio, ao passo que o regulamento possui apenas o conteúdo subordinado à lei e destinado a propiciar a sua fiel execução.
Indispensável citar CANOTILHO, o qual nos dá um importante aviso:

"O regulamento é uma norma emanada pela administração no exercício da função administrativa e, regra geral, com carácter executivo e/ou complementar da lei. É um acto normativo e não um acto administrativo singular; é um acto normativo mas não um acto normativo com valor legislativo." (grifamos)

A lição do jurista português, ao enfatizar a falta de valor legislativo do regulamento, é equivalente ao que o constituinte brasileiro institui em nossa Carta Política, em seu artigo 1º, parágrafo único: "Todo o poder emana do povo"; não poderá, assim, aquele que não é representante legítimo da vontade popular fazer aquilo que só à lei formal é permitido, qual seja: criar novos direitos e novas obrigações. Deverá, ao contrário, e conforme já salientado, ater-se a propiciar a fiel execução das leis.

GASPARINI (1995) conceitua o poder regulamentar como sendo a atribuição privativa do chefe do Poder Executivo para, mediante decreto, expedir atos normativos, denominados regulamentos, compatíveis com a lei e visando desenvolvê-la.

De modo muito semelhante, a conceituação constitucional do regulamento consta do artigo 84, inciso IV da Carga Magna, conforme se vê:

Artigo 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...) IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

Fica claro, de acordo com tal diploma constitucional, que tais regulamentos devem ser editados visando à fiel execução da lei, conforme já se viu.
Não poderá deste modo o Poder Executivo, quando no exercício do Poder Regulamentar, ultrapassar os limites do que lhe permitiu a lei: há de estar, necessariamente, a ela jungido.

É nesta mesma direção, ressaltando ainda o valor inferior do regulamento em relação à lei, o magistério de Hely Lopes MEIRELLES (2001: p. 171):

"Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à lei e, por isso mesmo, não a pode contrariar. O decreto geral tem, entretanto, a mesma normatividade da lei, desde que não ultrapasse a alçada regulamentar de que dispõe o Executivo."

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1997: 143), vai mais fundo no que se entende por decreto, tido como a expressão por excelência do Poder Regulamentar:

"Decretos não são propriamente atos normativos, mas de caráter administrativo, cuja competência exclusiva pertence ao chefe do Executivo, e que tem por finalidade dispor regras sobre situações gerais ou individuais, previstas de forma abstrata, de modo expresso ou implícito, na lei... Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à da lei, e, por isso mesmo, não a pode contrariar."

Da mesma maneira, REALE explica:

Não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que as normas regulamentares ou executivas estejam em conflito com o disposto ali não tem validade, e é suscetível de impugnação por quem se sinta lesado."

Há que lembrar ainda que não pode o Poder Executivo, a pretexto de "interpretar" a lei, realizar de fato uma ampliação ou uma restrição do alcance da mesma.
Veja-se o que afirma GASPARINI (1978):

"Outra faceta dos regulamentos subordinados é a de não poder o Executivo, a pretexto de regulamentar uma dada lei, impor a sua interpretação. Essa regulamentação disfarçada da lei iria muito além da atribuição que vimos examinando. A única interpretação aceita pelo sistema é a realizada pelo Judiciário, o único a dizer a palavra final. Nem mesmo a interpretação levada a efeito pelo Poder Legislativo, chamada de autêntica, é aceita, já que é entendida como nova lei, modificadora daquela dita interpretada. Com precisão, ensina Pontes de Miranda que, onde a lei oferece dúvida, não é ao Executivo que toca varrê-la, e enfatiza o ilustre Geraldo Ataliba: ‘a interpretação da lei, expressa no regulamento, não é vinculada senão para os subordinados hierárquicos do Presidente da República; não é mais autorizada que qualquer outra, doutrinária ou jurisprudencialmente; esta pelo contrário, sempre sobrepuja à primeira." (grifamos) (GASPARINI, 1978, p. 123)

Deste modo, vê-se que não há justificativa viável para a atitude do Poder Executivo no sentido de exacerbar dos limites de sua atribuição regulamentar: tal se dá, eventualmente, por um rigorismo excessivo por parte daquele Poder na aplicação da lei, porém a tendência é que os excessos sejam podados pelo Poder Judiciário.

Tal assertiva tem sido comprovada pelo grande número de ações que chegam ao Poder Judiciário questionando tais decretos, bem como pelas reiteradas decisões no sentido de que tais regulamentos ultrapassam o poder regulamentar, chegando a serem autênticas "leis de fato", no sentido de que, conforme se verifica, inovam na ordem jurídica, criando obrigações serem cumpridas para o exercício de determinados direitos subjetivos.

Para conceituar a idéia de fiel execução da lei, tarefa constitucionalmente reservada aos regulamentos em sua modalidade executiva, impende citar CANOTILHO, o qual lembra o artigo 199, alínea "c" da Constituição Portuguesa, onde se atribui ao governo competência para, no exercício das funções administrativas, "fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis".

Transportando-se tal conceito para o panorama constitucional nacional, poder-se-á talvez dizer que são sinônimas a definição da tarefa do regulamento executivo português e do nacional: isto porque o regulamento que propiciar a boa execução da lei será certamente fiel a ela; ao inverso, o regulamento que propiciar a fiel execução da lei certamente possibilitará, certamente, a sua boa execução.

Tal conceituação pode ser obtida na obra de VELLOSO (1994, p. 421), o qual afirma que:

"Os regulamentos, na precisa definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado, enquanto Poder Público. Editados pelo Poder Executivo, visam tornar efetivo o cumprimento da lei, propiciando facilidades para que a lei seja fielmente executada. É que as leis devem, segundo a melhor técnica, ser redigidas em termos gerais, não só para abranger a totalidade das relações que nela incidem, senão também para poderem ser aplicadas, com flexibilidade correspondente, às mutações de fato das quais estas mesmas relações resultam. Por isso, as leis não devem descer a detalhes, mas, conforme acima ficou expresso, conter, apenas, regras gerais. Os regulamentos, estes sim, é que serão detalhistas. Bem por isso, leciona Esmein, ‘são eles prescrições práticas que têm por fim preparar a execução das leis, completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar, todavia, nem o texto, nem o espírito.

Assim, uma alternativa possível para a solução do impasse hermenêutico poderia ser a seguinte observação de RIVERO, apud MORAES (2002: P. 95):

"A Administração é uma função essencialmente executiva: encontra na lei o fundamento e o limite para a sua actividade. Isso não exclui, em relação a ela, a faculdade de estabelecer, tal como o legislador, regras gerais, na medida em que tais regras sejam necessárias para precisar as condições de execuções das leis; mas as regras gerais de origem administrativa, ou regulamentos, estão inteiramente submetidos às leis." (grifamos)

Fica claro que tudo aquilo em que a regra não for estritamente necessária à execução da lei, ela não estará submetida à lei; constituir-se-á, deste modo, um abuso do poder regulamentar.

De acordo com a lição do doutrinador, a "função executiva" há de encontrar na lei tanto o fundamento, quanto o limite para sua atividade. E, desta maneira, qualquer diploma regulamentar tendente a dificultar o exercício do direito previsto em lei será contrário ao espírito constitucional do poder regulamentar, visto que não corresponderá à fiel execução da lei.

A respeito da questão do limite ao poder dito discricionário, FIGUEIREDO afirma (2001: pp. 201-203)

Enfatize-se que, como limite, na dinâmica da discricionariedade, necessariamente, há a proporcionalidade, a boa-fé, a lealdade e a igualdade, que, a tempo e hora, em tópicos próprios foram discutidos.Quando, por exemplo, a Administração regulamenta lei para sua fiel execução, como o deseja o texto constitucional, possibilita sua aplicação equânime por meio de regulamento, que a todos nivela.Na verdade, se a lei for aplicada sem o regulamento, que obriga os próprios administrados a se comportarem da mesma maneira, poderia ocorrer que, por meio da interpretação, houvesse aplicações diferentes. Destarte, o decreto regulamentador dentro da moldura da lei, é elemento de imensa valia para o respeito ao princípio da igualdade."

Verifica-se, desta maneira, que o caráter discricionário do poder regulamentar não permite, conforme já mencionado, a eleição de motivações subjetivas, por parte da Administração Pública, na escolha das maneiras de execução da lei; muito ao contrário disto, o regulamento deve ser editado de modo a não permitir a existência de tais elementos subjetivos, privilegiando sempre o atendimento ao princípio da isonomia

O conceito, as formas de expressão, os fundamentos normativos, o entendimento do STF e as diferentes posições doutrinárias sobre os limites do poder regulamentar é que veremos a seguir.

3.2.4. LIMITES DO PODER REGULAMENTAR

O poder regulamentar é um dos poderes administrativos e consiste na atribuição, conferida ao chefe do Poder Executivo da entidade federativa Estadual e Municipal, de expedir regulamentos, objetivando propiciar a fiel execução da lei.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
É uma das formas pelas quais se expressa a função normativa do Poder Executivo. Pode ser definido como o que cabe ao chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas complementares à lei, para fiel execução.

Muitas vezes, é uma idéia que parece confusa porque se regulamenta o que está em lei. No entanto, trata-se de um esclarecimento, explicitação que a lei requer, prescinde. Em sentido material, o resultado do poder regulamentar é considerado lei.

O poder regulamentar, porém, não se confunde com a função legislativa. Sua semelhança está na produção de atos gerais e abstratos; diferem, todavia, porque o legislativo pode inovar a ordem jurídica, O QUE NÃO PODE ACONTECER regra geral, no poder regulamentar, por respeito ao princípio da separação dos poderes.

A doutrina reconhece a existência de duas formas de manifestação do poder regulamentar: os regulamentos de execução e os regulamentos autônomos que não é o caso do presente Parecer.

O regulamento de execução é considerado a expressão clássica do poder regulamentar. Tem como objetivo explicar o modo, a operacionalização e os pormenores para a adequada execução de uma norma.

Assim, depende de lei prévia, não podendo ir além do que ela dispõe. É o mais usual e tratado pela doutrina como norma administrativa secundum legem.

No julgamento da ADIn 1.435-8, o STF apontou quatro requisitos para que o regulamento fosse assim tipificado: 1) lei prévia; 2) decreto que assegure a execução da lei; 3) agentes da administração pública como destinatários; 4) ausência de estipulação de direito ou obrigação.

Eis a ementa do julgado:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. DECRETO 1.719/95. TELECOMUNICAÇÕES: CONCESSÃO OU PERMISSÃO PARA A EXPLORAÇÃO. DECRETO AUTÔNOMO: POSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO. OFENSA AO ARTIGO 84-IV DA CF/88. LIMINAR DEFERIDA. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 - que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do artigo 21 da CF - é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. Medida liminar deferida. (ADI 1435 MC, Relator (a):  Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/1996, DJ 06-08-1999 PP-00005 EMENT VOL-01957-01 PP-00040)

Os decretos que visam explicitar conceitos legalmente previstos são considerados uma forma de regulamento de execução e são chamados de norma administrativa intra legem. Conforme Maffini são admitidos, quando não invadirem o campo de matérias reservadas à lei pela Constituição Federal:
(...) na hipótese ora analisada, a existência de regra em lei em sentido formal é imprescindível para que sejam fixados os parâmetros conceituais (ou standards), os quais serão tão-somente explicitados através de outras normas gerais e abstratas emitidas pela Administração Pública. Assim, as normas administrativas, mesmo que aparentemente autônomas, não o seriam, na medida em que estariam tão-somente explicitando um conceito legal, respeitados os elementos jurídicos contidos em sentido formal. (...) Uma advertência, contudo, há de ser feita: a técnica de atribuição de competência de explicitação direta de matérias absolutamente reservadas à lei em sentido formal, tais como a criação de obrigação de fazer ou de não fazer (artigo 5º, II, da CF), a tipificação de crime (artigo 5º, XXXIX, da CF), a criação de tributos (artigo 150, I, da CF).

Esse espaço de atuação administrativa é aceito pelo STF:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS/SÃO PAULO. CORREÇÃO MONETÁRIA. lEI 6.374, DE 1989, ARTIGO 109, parág. único, do Estado de São Paulo. Decreto nº 30.356, de 1989, do Estado de São Paulo. I. - Legitimidade da correção monetária do ICMS paulista a partir do décimo dia seguinte à apuração do débito fiscal. Delegação regulamentar legítima: regulamento delegado "intra legem", sem quebra do padrão jurídico posto na lei. II. - Improcedência da alegação no sentido de infringência ao princípio da não cumulatividade (C.F., ART 155, $ 2º, I). III. - Precedentes do STF: RREE 154.273-SP e 172.394-SP, Plenário, 21.06.95. IV. - Discussão em torno da legalidade de índices de indexação diz respeito ao contencioso infraconstitucional, incabível em sede de recurso extraordinário. V. - Agravo não provido.(RE 158891 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 26/09/1995, DJ 01-12-1995 PP-41690 EMENT VOL-01811-03 PP-00563)

EMENTA: - CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO - SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, artigo 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; artigo 154, II; artigo 5º, II; artigo 150, I. I. - Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho - SAT: Lei 7.787/89, artigo 3º, II; Lei 8.212/91, artigo 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao artigo 195, § 4º, c/c artigo 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., artigo 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT. II. - O artigo 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o artigo 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais. III. - As Leis 7.787/89, artigo 3º, II, e 8.212/91, artigo 22, II, definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de "atividade preponderante" e "grau de risco leve, médio e grave", não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., artigo 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., artigo 150, I. IV. - Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional. V. - Recurso extraordinário não conhecido.(RE 343446, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/2003, DJ 04-04-2003 PP-00040 EMENT VOL-02105-07 PP-01388)

EMENTA: ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - REEXAME NECESSÁRIO - RECURSO DE APELAÇÃO - SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - AUDITOR FISCAL- LEI ESTADUAL Nº 15.464/2005 - EXTRAPOLAÇÃO DO PODER REGULAMENTAR PELO DECRETO 44.769/2008 E PELA RESOLUÇÃO 6.582/2008 - ESPECIALIZAÇÃO - REQUISITO IMPLEMENTADO - PROMOÇÃO POR ESCOLARIDADE ADICIONAL - JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA - ARTIGO 1º-F, DA LEI N. 9.494/97, COM A REDAÇÃO DA LEI N. 11.960/09, A PARTIR DA VIGÊNCIA DO TEXTO LEGAL - INCIDÊNCIA UMA ÚNICA VEZ - ALTERAÇÃO DE OFÍCIO - CABIMENTO - SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA EM REEXAME NECESSÁRIO - PREJUDICIALIDADE DO RECURSO VOLUNTÁRIO. 1. O Decreto e a Resolução que regulamentaram a Lei Estadual nº 15.464/05 estabeleceram, indevidamente, requisitos para a concessão da promoção por escolaridade adicional não previstos na lei regulamentada, extrapolando o poder regulamentar conferido às espécies normativas infralegais. (...) (TJMG, 6ª CaCiv, RN/AC nº. 1.0024.11.203086-1/001, rel. Des. Correa Júnior, j. em 06/08/2013).

ADMINISTRATIVO - SERVIDORA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - AGENTE DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIA - PROMOÇÃO POR ESCOLARIDADE - LEI ESTADUAL Nº. 15.788/2008 - ATENDIMENTO DOS REQUISITOS - DEMONSTRAÇÃO - LIMITAÇÃO PELO DECRETO Nº. 44.769/08 E PELA RESOLUÇÃO CONJUNTA DA SEPLAG/SEDS Nº 6574/08 - NOVAS EXIGÊNCIAS - IMPOSSIBILIDADE - PEDIDO JULGADO PROCEDENTE - JUROS DE MORA E CORREÇÃO - APLICAÇÃO DA LEI Nº 11.960/09 - ISENÇÃO QUANTO ÀS CUSTAS PROCESSUAIS - REFORMA PARCIAL. 1 - Se a Lei Estadual nº 15.788/08 estabelece de forma taxativa os requisitos para concessão da promoção por escolaridade, não pode o Decreto nº. 44.769/08 e a Resolução Conjunta nº 6574/08, suplantando os limites de regulamentação que lhes são próprios, restringir o direito do servidor, criando novo requisito temporal e de especialidade, porque submetida esta espécie normativa à moldura já previamente delineada em lei. 2 - Demonstrado o atendimento pela servidora das condições e dos prazos estabelecidos na legislação estadual, deve lhe ser reconhecido o direito à promoção por escolaridade adicional, fazendo jus a um nível na tabela de vencimentos prevista para o seu cargo, por conclusão de curso de especialização. (...) (TJMG, 6ª CaCiv, AC nº. 1.0145.11.029050-2/001, relª. Desª. Sandra Fonseca, j. 20.11.2012)

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA - PROMOÇÃO POR ESCOLARIDADE ADICIONAL - AGENTE DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIO - ARTIGO 11, § 3º, DA LEI ESTADUAL 14.695/03 - DECRETO ESTADUAL Nº. 44.769/08 - ABUSO DE PODER REGULAMENTAR - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO JULGADO PROCEDENTE. 1) Ao servidor público estadual ocupante do cargo efetivo de "agente de segurança penitenciário", que comprove o preenchimento de todos os requisitos exigidos pelo artigo 11 da Lei Estadual nº. 14.695/03 e pelo Decreto Estadual nº. 44.769/08 (naquilo que não excedeu o poder regulamentar), deve ser reconhecido o direito à promoção por escolaridade adicional e, via de conseqüência, o pagamento das diferenças salariais pretéritas, inclusive reflexos. 2) Recurso provido.(TJ-MG   , Relator: Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Data de Julgamento: 28/11/2013, Câmaras Cíveis / 8ª CÂMARA CÍVEL)

3.2.5. DO ABUSO DE PODER REGULAMENTAR

Dispõe a Constituição da República:

Artigo 49 - É da competência exclusiva do Congresso Nacional V- sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa

A questão da sustação de decretos do Poder Executivo por abuso de poder regulamentar é amplamente tratada na doutrina nacional. ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ sintetiza com clareza:

“O regulamento, que desborda os estritos limites do poder regulamentar, é um regulamento viciado, é um ato administrativo abusivo e como tal condenado em todos os ordenamentos jurídicos, de um modo geral. Registra a doutrina, por isso mesmo, a chamada figura do ‘excesso de poder regulamentar’”[1]
O poder regulamentar finca sua raízes no próprio princípio da legalidade, assim tratado pela ilustre Profª MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

“Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite; no âmbito das relações particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe”.[2]

Daí porque a Constituição fala em fiel execução das leis. A atividade regulamentar do Poder Executivo é extremamente restrita. Comentando o inciso IV do artigo 84 da Carta Magna com surpreendente ironia, IVES GANDRAMARTINS ressalta:

“Por outro lado, a expressão ‘fiel execução’ pode admitir exegese de que a simples execução seria ‘infiel’ ou, o que é pior, na tradição dos decretos dos Presidentes brasileiros, que não têm demonstrado maior afeto à Constituição, que a expressão foi colocada para que se lembrem de que devem executar fielmente os comandos normativos”[3]

Deve-se ressaltar, porém que não é descabida a hipótese de “abuso por omissão”.

Explica-se: se o Chefe do Poder Executivo regulamenta fielmente vários dispositivos de uma lei mas olvida por completo a existência de outro dispositivo da mesma lei, não está contribuindo para sua “fiel execução” mas, muito pelo contrário, está desviando-se dos propósitos da mesma. ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ cita VICENTE RÁO, para quem:
“Ao exercer a função regulamentar não deve, pois, o Executivo criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir, ou modificar direitos ou obrigações constantes da lei; ordenar ou proibir o que a lei. não ordena nem proíbe; facultar ou vedar por modo diverso do estabelecido em lei; extinguir ou anular direitos que a lei criou; criar princípios novos ou diversos; alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir o ato; atingir, alterando-o por qualquer modo, o texto ou o espírito da lei[4]

3.2.6. DOS EFEITOS DO ABUSO

Da leitura do texto constitucional vigente, verifica-se a seguinte previsão:

Artigo 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(...)
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

ATALIBA, referindo-se ao à Constituição de 1967, que contava com idêntica redação em seu artigo 82, inciso VII, deixa claro seu entendimento no sentido de que o abuso do poder regulamentar constitui atentado ao fiel cumprimento das leis, explicando que (ATALIBA: p. 194):

"Se ele é o responsável pelo fiel cumprimento das leis (obviamente, das leis administrativas), e se estas atribuem ônus, direitos, encargos, tarefas e deveres à administração pública e se esta é subordinada ao chefe do Executivo, parece óbvio que este pode ditar critérios e normas sobre a forma de o imenso e gigantesco aparelho (administração pública federal) dar ‘fiel execução à lei’.
Na verdade, uma visão objetiva prontamente revela o equilíbrio harmônico do sistema delineado.Seria absurdo dar ao órgão tão grande poder, sem sancionar seu não uso ou abuso. Por outro lado, seria ilógico atribuir-lhe responsabilidade tão grave e ampla, sem lhe conceder os instrumentos para bem se desincumbir dela.Por isso, se lhe dá enormes poderes. Em contrapartida, a Constituição o responsabiliza por qualquer abuso, desvio, mau uso ou não uso de suas competências (artigo 82)"

Não obstante seja constitucional e doutrinariamente definido como crime de responsabilidade, o abuso do poder regulamentar não é regularmente tipificado, em lei ordinária, como sendo crime; assim, não sendo tipificado, não atende ao requisito essencial do artigo 5º, inciso XXXIX da Carta Magna; não é, deste modo, crime em sentido formal, constituindo ato impunível; em que pese ser, em tese, ato ilícito, não é ilícito penal, até que venha a ser previsto como tal em lei específica.

3.2.7. O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER EXECUTIVO

A respeito dos remédios administrativos que possibilitam, pelo próprio Poder Executivo, o controle dos abusos administrativos em sentido lato, TÁCITO (1959, p. 33) lembra ainda existirem três tipos de meios de controle, que são os meios preventivos, os sucessivos e os repressivos.

Entre os preventivos, cita que determinados atos administrativos dependem, para sua validade, de autorização ou aprovação: são atos complexos que se formam mediante várias manifestações de vontade, sem as quais não se tornam completos. A intervenção obrigatória de mais de uma autoridade atende tanto a condições de conveniência quanto às razões de legalidade.
Cita também os meios sucessivos de controle, entre os quais o julgamento da legalidade dos contratos, das aposentadorias e das pensões pelos Tribunais de Contas.

Finalmente, entre os meios repressivos de controle, cita a anulação ex officio ou mediante representação, de atos administrativos, baseados no fato de que não há direitos adquiridos contra a lei.

3.2.8. O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER LEGISLATIVO

Tal controle fundamenta-se na disposição emanada do artigo 49, inciso V da Carta Política, o qual afirma que:

Artigo 52. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)

V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Tal competência tem delimitação bastante específica, alcançando, exclusivamente, atos normativos de primeiro grau, vale dizer: abstratos, gerais e impessoais, não se estendendo aos atos concretos, e decorrentes do poder regulamentar de competência do Presidente da República. Nesse sentido, vide excerto retirado de FERRAZ (1995):

"Exatamente porque adstrito aos expressos termos da Constituição, o poder congressual alcança, tão somente, os atos executivos enquanto expressão do poder regulamentar do Chefe do Executivo. Sendo o poder regulamentar inerente ao Presidente (...), não cabe a sustação, pelo Congresso Nacional, de atos executivos secundários, ainda que normativos, tais como portarias e instruções, mesmo que, por via reflexa, estes se revistam de caráter abusivo relativamente à lei. Somente o regulamento aprovado por Decreto Presidencial pode ser objeto dessa excepcional competência. Para os demais atos abusivos permanece o controle jurisprudencial. Por igual, descabe a sustação de decretos presidenciais de conteúdo concreto, atos administrativos de caráter individual, portanto".

Ocorre, porém, que o Congresso Nacional, por razões que não caberia explicar neste trabalho, não tem o costume de aplicar tal prerrogativa que lhe é conferida, ainda que tal comportamento importe em diminuição de seu próprio prestígio. Já se manifestou, a respeito desse poder de controle, o Supremo Tribunal Federal, com os seguintes dizeres:

"Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o artigo 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (...)’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.).

Deste modo, verifica-se que, não obstante seja considerado comportamento grave, o abuso do poder regulamentar não costuma ser controlado pelo Poder Legislativo, ao menos especificamente em matéria previdenciária; de fato, em pesquisa realizada no ambiente virtual, não logramos encontrar uma única resolução de sustação de decreto em matéria previdenciária baseado no inciso V do artigo 49 da Carta Magna.

TÁCITO (1959, p. 39) dá uma opinião que pode eventualmente explicar o porquê de tal comportamento por parte do poder legislativo, ao classificar a sua presença como eminentemente política; apóia tal tese o supracitado ALMEIDA (1959, p. 31), quando afirma que o controle do abuso do poder regulamentar pelo Poder Legislativo é "de difícil trilho, porque seria o de o Poder Legislativo ser mais ativo e presente e não permanecer atrasado em relação aos problemas que lhe cabe resolver por leis sábias".

3.2.9. O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER JUDICIÁRIO

Verifica-se, então, a possibilidade de controle do abuso do poder regulamentar pelo Poder Judiciário. Tal possibilidade está prevista, como direito fundamental, no artigo 5º, inciso XXXV, o qual prevê a inafastabilidade da análise, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça de lesão a direito, conforme se vê:

Artigo 5º.

(...)

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Tal controle tradicionalmente ocorre somente sob o âmbito do controle da legalidade do ato, através da análise de lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo. Tratando-se, como é o caso que estudamos, de abuso do poder regulamentar na esfera federal, por ato expedido pelo Presidente da República ou por autoridade a ele subordinada, a competência para análise do caso será da Justiça Federal.

No caso do controle pelo Poder Judiciário do abuso do poder regulamentar, impende lembrar que se examina somente a legalidade e não o mérito, a conveniência e a oportunidade do ato, observação importante visto que, conforme já se viu, há uma componente de discricionariedade no poder regulamentar, no que diz respeito à maneira de propiciar a fiel execução da lei.

Do mesmo modo, tal abuso de poder não é, tradicionalmente, passível de controle de constitucionalidade abstrato realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em vista do entendimento da Corte a respeito da inconstitucionalidade indireta, contido no bojo dos autos da ADI 996-MC. Senão vejamos:

"Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada." (ADI 996-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 11-3-04, DJ de 6-5-94).
Em que pese o respeitabilíssimo entendimento do Supremo Tribunal Federal, tal posicionamento não é livre de toda crítica; crítica esta dirigida não ao Tribunal Maior em si mesmo, mas ao sistema judiciário nacional

Isto porque, ainda que indiretamente, fica caracterizada alguma dose daquilo que tem sido denominado como a auto-restrição do Poder Judiciário, no sentido de levar a extremos de rigidez o princípio da separação dos poderes.

Tratando desta auto-restrição, ESTEVES (2007: p. 82) afirma que:

"Além da construção teórico-dogmática de restrição dos direitos fundamentais sociais, a qual os acondiciona ao exercício da liberdade – aliada a concepções que lhes negam aplicabilidade imediata, subjetividade e justiciabilidade – e à dogmática da separação de poderes, pesa, por fim, uma última contraposição que tem nascedouro sob a influência secular de todas as outras e acaba demonstrando o caráter prático da questão: a auto-restrição do Judiciário. No tocante à necessidade de superação do dogma da separação de poderes, a fim de que o Judiciário desempenhe um papel ativo e concretizador dos direitos fundamentais sociais, a auto-restrição é campo em que o problema se apresenta de forma mais contundente e deve ser entendida como tradicional obstáculo à concretização e efetividade dos direitos sociais, pelo qual juízes consideram que a decisão sobre prioridades é dos órgãos políticos do sistema. O comportamento auto-restritivo do Judiciário quando chamado a desempenhar, com o Executivo e o Legislativo, a tarefa de concretizador da Constituição, denuncia a existência de uma concepção jurídico-ideológica que afirma não existir legitimidade democrática do Judiciário que lhe dê incumbência objetiva na efetividade dos direitos fundamentais sociais.
PEDRO LENZA (2008: p. 161) leciona, a este respeito, alteração que vem ocorrendo na jurisprudência nacional:

O STF, excepcionalmente, conforme noticia Alexandre de Moraes, ‘tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta a lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo. Nessa hipótese, haverá possibilidade de análise de compatibilidade diretamente com a Constituição Federal para verificar-se a observância do princípio da reserva legal.Em interessante precedente, estabelece o STF: ‘Estão sujeitos ao controle de constitucionalidade concentrado os atos normativos, expressões da função normativa, cujas espécies compreendem a função regulamentar (do Executivo), a função regimental (do Judiciário) e a função legislativa (do Legislativo). Os decretos que veiculam ato normativo também devem sujeitar-se ao controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. O Poder Legislativo não detém o monopólio da função normativa, mas uma parcela dela, a função legislativa" (ADI 2.950-AgR, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, j. 06.10.2004, DJ, 09.02.2007).

Confira, ainda:

“Impugnação de resolução do Poder Executivo estadual. Disciplina do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, consumo e assuntos análogos. Ato normativo autônomo. Conteúdo de lei ordinária em sentido material. Admissibilidade do pedido de controle abstrato. Precedentes. Pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, o ato normativo subalterno cujo conteúdo seja de lei ordinária em sentido material e, como tal, goze de autonomia nomológica" (ADI3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 29.08.2007, DJ, 11.10.2007.

Verifica-se, deste modo, uma atenuação daquela supracitada tendência de auto-restrição do Poder Judiciário, no sentido de que, ainda que, do abuso do poder regulamentar, resulte uma inconstitucionalidade indireta, esta inconstitucionalidade poderá ser analisada em sede de ação direta de inconstitucionalidade, tendo o condão de, eventualmente, vir a afastar definitivamente o ato abusivo do cenário normativo.

3.2.10. DA OMISSÃO DO PODER REGULAMENTAR

Esse ditame decorre da obediência ao Princípio da Legalidade e, consequentemente, ao Princípio da Eficiência, elencados no artigo 37 da Constituição Federal, que regem os atos da Administração Pública.

Assim temos na esclarecedora lição de Hely Lopes Meirelles:

A legalidade, como princípio da administração (CF, artigo 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal,conforme o caso.
A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inciso I do parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da atuação conforme a lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos.
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.
Por outras palavras, a natureza da função pública e a finalidade do Estado impedem que seus agentes deixem de exercitar os poderes e de cumprir os deveres que a lei lhes impõe. Tais poderes, conferidos à Administração Pública para serem utilizados em benefício da coletividade, não podem ser renunciados ou descumpridos pelo administrador sem ofensa ao bem comum, que é o supremo e único objetivo de toda ação administrativa. (grifei).[5]

3.2.11. DO ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO

Na Doutrina, o posicionamento sobre o tema não é diferente.

O ilustre Prof.Celso Antônio Bandeira de Mello , ensina que:[6]

22. Costuma-se referir a atribuição regulamentar conferida ao Chefe do Poder Executivo designando-a como “poder regulamentar”. Embora o uso corrente e moente, a expressão é infeliz. Melhor seria designar tal atribuição como “dever regulamentar”, pois o que o Chefe do Executivo tem é o dever de regulamentar as leis que demandam tal providência, e não meramente um “poder” de fazê-lo.
...
23. Por tais motivos, fácil é compreender-se que, se uma lei depende de regulamentação para sua operatividade, o Chefe do Executivo não pode paralisar-lhe a eficácia, omitindo-se em expedir as medidas gerais indispensáveis para tanto. Admitir que dispõe de liberdade para frustrar-lhe a aplicação implicaria admitir que o Executivo tem titulação jurídica para sobrepor-se às decisões do poder Legislativo.
...
Frustrar a execução de uma lei é descumpri-la por omissão.

Não restam dúvidas de que o Chefe do Executivo que deixar de editar a lei e demais atos necessários a garantir a progressão dos servidores estará descumprindo a determinação legal por omissão.

É o que entende também o Promotor de Justiça Marcos Bittencourt Fowler,do [7]Paraná:

“Quando a norma estipula o prazo em que deve ser regulamentada, a omissão configura-se a partir do momento em que esse lapso temporal determinado não seja respeitado. Outrossim, naquelas normas que pedem complemento, mas não fixam prazo, a omissão não se caracteriza de plano: há necessidade de estabelecimento de critérios fixadores do momento em que surge a inércia regulamentar. Neste caso, a solução é a utilização de um juízo de razoabilidade, que deve ser construído a partir do caso concreto, balizada em determinados fatos.”
A autonomia dos entes da Federação não constitui qualquer espécie de salvo conduto, como quer fazer crer o réu, ao afirmar que “...o MUNICÍPIO DE (...) tem plena e total autonomia para legislar sobre as matérias acima elencadas, quando e como entender oportuno,sem que possa o Poder Judiciário fazer qualquer ingerência neste particular” (fls187).
Se assim fosse, o Executivo municipal não estaria obrigado a observar normas senão aquelas emanada dele próprio, o que seria um absurdo. Para o caso em desate, existe norma federal que deve ser observada pelo município e que o compele a legislar.

Nesse sentido, segue a lição do ilustre doutrinador Hely Lopes Meirelles:

Quando não houver prazo legal, regulamentar ou regimental para a decisão, deve-se aguardar por um tempo razoável a manifestação da autoridade ou do órgão competente, ultrapassado o qual o silêncio da Administração converte-se em abuso de poder,corrigível pela via judicial adequada, que tanto pode ser ação ordinária, medida cautelar ou mandado de segurança.

Com essa breve exposição do arcabouço doutrinário sobre o tema, evidenciasse que o entendimento majoritário abraça a tese da obrigatoriedade da regulamentação da Lei pelo Administrador Público e de sua responsabilidade pessoal nos casos de omissão na proposição da mesma.

Vejamos o entendimento jurisprudencial:

3.2.12. DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL

AÇÃO DECLARATÓRIA CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS. SERVIDOR PÚBLICO. QUADRO PRÓPRIO DE PESSOAL DO IAPAR. PROGRESSÃO POR AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO. ARTIGO 15, “CAPUT” E § 3.º, DA LEI ESTADUAL N.º 15.179/2006.PRAZO DETERMINADO, PREVISTO PELA REFERIDA LEI, PARA SUA IMPLANTAÇÃO (ARTIGO 13, § 5.º). ATO VINCULADO. INOBSERVÂNCIA. ILEGALIDADE CONFIGURADA. DIREITO ÀS DUAS PROGRESSÕES E RESPECTIVAS DIFERENÇAS SALARIAIS. PRECEDENTES DA CÂMARA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARBITRAMENTO POR EQUIDADE (CPC, ARTIGO20, § 4.º), COM OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. APELAÇÃO DESPROVIDA COM A CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO ­ grifo  2DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 221. 3MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 428.  nosso (ACR nº 1283548-6. 5ª Câmara Cível. Rel. Adalberto Jorge Xisto Pereira. Julgado em: 05/05/2015).
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS. SERVIDOR PÚBLICO DO IAPAR QUE EXERCE O CARGO DE AUXILIAR DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA.PLEITO DE PROGRESSÃO FUNCIONAL EM DOIS NÍVEIS SUBSEQUENTES AO ATUAL, COM O DEFERIMENTO DAS DEVIDAS DIFERENÇAS SALARIAIS. SENTENÇA QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS CONSTANTES NA INICIAL. PROGRESSÃO POR AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO (ARTIGO 24 DA LEI ESTADUAL Nº 15.179/2006). REQUISITOS CONFIGURADOS. SERVIDOR QUE NÃO PODE SER PREJUDICADO POR CONTA DA INÉRCIA E OMISSÃO POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, A QUAL DEIXOU DE REGULAMENTAR A REFERIDA PROGRESSÃO EM TEMPO HÁBIL, TRATANDO-SE DE ATO VINCULADO. PRECEDENTES DESTA CORTE DE JUSTIÇA.RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME NECESSÁRIO.(TJPR - 4ª C.Cível - ACR - 1372631-1 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina -  Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime -  - J. 01.09.2015)






[1] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes : o poder congregacional de sustar atos normativos do poder executivo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1994. p. 76-77.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 5. ed. São Paulo : Atlas, 1995,p. 61.
[3] BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil.São Paulo : Saraiva, 1997. v. 4, p. 280.
[4] FERRAZ, p. 81-82, sublinhamos
[5] Meirelles, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 34º edição. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 89.
[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit., p. 349-350.
[7] FOWLER, Marcos. Impugnação elaborada pelo Promotor Marcos Fowler, à Contestação apresentada pelo Município de (...),nos autos de Ação Civil Pública que versa sobre a obrigatoriedade de implantação de Plano de Carreira e Remuneração do Magistério. Disponível em: http://folio.mp.pr.gov.br/CGI-BIN/om_isapi.dll?clientID=158827&hitsperheading=on&infobase=educacao_modelos.nfo&record={1FC3}&softpage=Document42. Acesso em: 25 de setembro 2015.

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